IV Domingo
de Quaresma
«Os publicanos e
pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém, e os
mestres da Lei criticavam Jesus: “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição
com eles”. Então Jesus contou-lhes esta parábola: “Um homem tinha dois filhos.
O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E
o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, o filho mais novo juntou
o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada.
Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e
ele começou a passar necessidade. Então foi pedir trabalho a um homem do lugar,
que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. O rapaz queria matar a fome com
a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam. Então caiu em si e
disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo
de fome. Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra
Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos
teus empregados’. Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava
longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o
e cobriu-o de beijos. O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra o Céu e
diante de ti. Já não mereço ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos
empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai
um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos
fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava
perdido e foi encontrado’. E começaram a festa. O filho mais velho estava no
campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. Então
chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. O criado respondeu:
‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com
saúde’. Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia
com ele. Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos,
jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu
festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens
com prostitutas, matas para ele o novilho cevado’. Então o pai lhe disse:
‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso
festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver;
estava perdido, e foi encontrado’. »
O texto de hoje, uma das mais comoventes páginas
do Novo Testamento, nos ajuda a compreender o porquê, a razão de fundo que rege
e motiva a conversão. Como bem o sabemos, a conversão ou “penitência” no âmbito
cristão não tem o sentido de um simples esforço de superamento próprios
limites, aperfeiçoamento ético ou algo semelhante. O Evangelista nos sugere uma
motivação maior, a única capaz não somente de fazer com que o homem responda ao
apelo a sair fora de seu mundo, mas lhe dá também a força para fazé-lo. “Saber que...” não é a mesma coisa que
ter a “força para...”, e disto nós
sempre fazemos experiência. O “imperativo categórico” (I.Kant: A
metafísica da moral) pelo qual “querer
é poder” nem sempre corresponde à nossa realidade quotidiana; pelo
contrário, na maioria das vezes sabemos qual deveria ser o caminho a percorrer,
no entanto, a experiência que fazemos é completamente outra. Parece um círculo
vicioso que, com frases lapidárias, São Paulo
confessa aos cristãos de Roma nestes termos: «Nem
mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que quero e sim o
que detesto!» (Rm. 7,15). De fato, quem de
nós, porquanto tenha dito a si mesmo “isto
não vou mais fazer”, antes ou depois não acaba repetindo o mesmo erro
embora sob forma diferente? Contudo, existe alguma coisa, existe uma motivação
tão forte que, uma vez que penetra no coração, é capaz de dar a força para a
conversão, mesmo passando por caminhos estranhos e imprevistos. Em que tal força
nos é sugerido hoje pelo Evangelista; vejamos como ele nos ajuda a descobrir tal
sentimento; longe do nosso intuito pretensão de alcançar a amplidão do texto de
hoje!
Sabemos que não estamos diante de uma alegoria
ou uma metáfora sobre a necessidade da conversão. Jesus não inventou uma
fábula; vários pequenos detalhes nos sugerem que Jesus tenha se inspirado a um
fato ocorrido; um fato que Ele, como costumava fazer, enriqueceu com uma série
de ensinamentos sobre o homem, sobre as suas reações, sobre o dinamismo daquele
encantador processo que é um “perder para se reencontrar” como lemos no Cântico
dos Cânticos.
Um detalhe significativo de que não se trate de
uma história inventada isto é que a narração não identifica o pai dos jovens
com Deus, pois assim lemos: «Pai, pequei
contra o Céu e diante de ti»; logo percebemos que existe uma distinção entre o
pai e Deus. É Jesus quem estabelece uma analogia: tal como é o pai dos dois,
assim é Deus. Em jogo, nesta parábola, está o tipo de relação que estabelecemos
com Deus, representada pelos dois jovens.
Ambos são filhos e possuem com o pai a mesma
relação essencial. Ambos são filhos, mas possuem uma relação existencial
diferente. Vivem essa mesma filiação em condições diferentes: um é o
primogênito, a este, pelo direito da época, iam dois terços da herança,
enquanto ao mais jovem cabia somente um terço. A transferência da herança podia
ser efetuada também enquanto o pai ainda estava vivo; todavia o usufruto não
podia ser administrado por nenhum dos herdeiros enquanto o pai estivesse vivo. Ora,
na ótica dessa legislação e costumes, o mais jovem estava pedindo algo inusitado:
pediu de usar algo que ainda não tinha à disposição. Ele, embora ele considere
“sua” a parte de herança, esta não lhe pertence “de fato” mas somente “de
direito”. Profundos conhecedores do ambiente oriental afirmam de não conhecer precedentes
de situações como essa narrada por Jesus; ora, isto nos leva a pressupor que o
próprio Jesus, elaborando esta história, quis nos dar uma indicação sobre o
“seu” Pai. A primeira coisa que o Senhor nos dirá é que o Pai é um Pai que
surpreende, como veremos mais adiante.
Ao requerer a “herança que lhe cabe”, o jovem fez
um pedido lógico mas absurdo e.... mesmo assim o pai atendeu! Mesmo quebrando
as regras e costumes o pai transpôs as leis estabelecidas, deixando pasmos os
familiares e os bem-pensantes (para os quais Lucas dirige esta parábola; cfr.
Lc. 15,2). Assim fazendo, o pai renunciava ao seu direito em favor de um
capricho -infundado- do filho. Assim é o Pai de Jesus, não é um rival do homem,
não concorre com ele; o Seu amor não se deixa embrenhar pela teia do “certo e
errado” que sufoca o amor espontâneo e livre. É um Deus capaz de arriscar no
homem, apostar nele, mesmo sabendo que nem sempre esse é capaz de administrar
hoje aquilo que lhe será confiado como valor definitivo mais tarde. Um homem
que, no caso, “sabe” de ser filho de Deus, mas não sabe o que isto significa. É
exatamente a imagem do filho que se afasta; sabe de ser filho mas não sabe o
que isso significa e, portanto, busca a sua identidade com os próprios meios e
conforme uma idéia pressuposta de si. É o que quase sempre nos conduz distantes
de Deus: quando queremos ser aquilo que não sabemos, dar início a uma aventura
sem meta sem indicação, sem uma mão que nos sustente no momento em que será
necessário. Mesmo assim, o Pai de Jesus respeita o homem em sua liberdade,
mesmo quando isto implique em sofrimento, um sofrimento que poderia ter sido
dispensado.
O jovem achava que o seu relacionamento com o
pai estivesse privo de liberdade, e buscou na independência a liberdade.
Todavia, bem cedo descobrirá que liberdade não tem nada a ver com
independência. A independência é fácil de alcançar, não é assim quanto à
liberdade. Para obter a independência é só eliminar alguns obstáculos externos,
mas a liberdade se conquista a partir do interior de nossa existência e isto é
bem mais complicado. A independência está fora de nós, a liberdade está dentro.
Foi assim, confundindo as duas coisas, que o jovem caiu na armadilha. Ele
estava certo de que, tendo os recursos necessários, conseguiria alcançar a sua
independência e, com esta, a felicidade.
De coração apertado, o pai permitiu ao jovem de
trilhar o caminho que desejava.
Parece entrever, nesta história, a história de
uma humanidade que optou por prescindir de Deus, que acredita estar em
condições de resolver sozinha a própria vida e, por outro lado, parece ver a
paciente espera de Deus, a sua tristeza quando alguém interpreta como falta de
liberdade a relação com Ele. Paradoxalmente, para o jovem, a quebra de uma
relação significava a felicidade; a fuga era interpretada como libertação e
auto-realização. Interessante é que a primeira sensação depois que fugimos de
um envolvimento comprometedor é sempre a sensação de estar mais “livres”
soltos, leves para poder fazer o que desejamos...
Estamos aqui diante do primeiro ato do pecado:
cultivar em nós um conceito de relação com Deus que não corresponde à
realidade. Isto acontece quando nós nos colocamos como sendo o eixo sobre o
qual tudo roda. Assim, ao invés de perguntarmo-nos “quem sou eu para Deus?”
invertemos as posições: “quem é Deus para mim?”. Aqui, nos somos o centro, a
medida e o fim de tudo, inclusive da relação com Deus. Que engano!!!
A parábola continua narrando o aparente sentido
de liberdade que o jovem vivia: não precisava prestar contas a ninguém, árbitro
de si mesmo e de seus desejos, livre de realizar o que quisesse... é a história
de muitos. Mas aconteceu o imprevisto: a carestia. Algo superior ao querer ou
não querer do homem. É assim. De fato a vida tem sempre um momento imprevisto
que nos envolve em todas as nossas dimensões, mais forte de nós e superior a
nós mesmos, porquanto o queiramos negar. O imprevisto sobrevém com toda a sua
carga. É, então, nessas circunstâncias que nos descobrimos realmente por aquilo
que somos; descobrimos se possuímos ou não um tesouro, se temos ou não os meios
necessários para não sucumbir diante do inesperado. O jovem teve que descobrir
que a sua era uma simples, presunçosa, ilusão. A vida é objetiva, não é uma
fantasia.
A fome reconduziu o jovem ao essencial: «voltou em si mesmo». Apenas quando chegamos ao essencial da nossa
vida, apenas quando permitimos à ação de Deus (inclusive através de eventos
discutíveis, como a carestia, a fome...) de nos reconduzir ao essencial que
começamos a sentir novemente o sentido da liberdade, sim a verdadeira liberdade
não está na “fuga de si mesmo”, não se encontra “fora”, fazendo o que queremos,
mas sim quando «voltamos em nós mesmos». Existe um “voltar em si” que é puro
egoismo, e um voltar em si que é
humildade, é dar-se conta de ter agido “fora de si”, ou seja, sem levar
em consideração “quem sou eu” diante de um pai que está disposto a renunciar
aos próprios direitos, à propria imagem diante dos vizinhos e conhecidos...
Assistimos a um precipitar dos eventos. Um
contra-senso: aquele que achava de não ser livre porque estava junto com um pai
do qual havia construído uma imagem distorcida, de repente se via servo de
porcos! Sim, animais impuros aos quais administrava o alimento, isto é, aquilo
que a ele mesmo faltava. É a descrição da degradação à qual se submete qualquer
pessoa que decida quebrar a relação natural com Deus colocando a si mesmo no
lugar do Altíssimo. Todo dia o jovem era obrigado a fazer o que lhe causava
repugnância, nojo. E mais, precisava comer escondido, roubar, agir contra seus
princípios... tudo porque sobreveio a carestia que lhe mostrou a verdade.
Quanto é bom, como é libertador quando Deus nos mostra a verdade sobre nós
mesmos! Como não O agradecer? Mas, quantas vezes fazemos o contrário?
A volta, sofrida, revelou ao jovem também a
verdade sobre o seu pai. Dos muitos aspectos do processo de retorno, descritos
na parábola, sempre fiquei encantado com um detalhe com o qual Jesus enriqueceu
a narração: «o pai correu». Mais uma vez o
Pai de Jesus se revela capaz de surpreender o homem, e isto é tanto mais
evidente quando constatamos que, na cultura médio-oriental nunca, repito, nunca
um homem “corre” ao encontro de alguém; é um ato considerado impróprio, é uma
desonra no ambiente oriental. Um homem sempre espera, principalmente se ele
está na sua casa. Não creio que o gesto do pai precise de qualquer comentário o
qual, simplesmente, empobreceria a riqueza da sua atitude. O pai «corre», o Pai «corre». O pai novamente
surpreende a todos, como no início da narração, como fará com os dois irmãos e
como faz conosco quando escolhemos a humildade, renunciamos à nossa mente e
aderimos ao nosso coração. Corre, corre porque a felicidade Dele não lhe
permite enxergar mais nada a não ser o filho. Uma felicidade prorrompente que
desfaz todas as expectativas plausíveis. Toda pessoa vale pelo que é, não por
aquilo que faz... e ele é “filho”!
Não importa qual tenha sido a vida do jovem, não
importa por quais caminhos ele, dessa vez, se encontrou realmente com o pai,
fato é que o filho mudou a sua visão sobre o pai e com esta o seu
relacionamento.
Estamos aqui diante de uma boa motivação para a
conversão: a felicidade do pai.
A conversão não é para nós, mas para a
felicidade Daquele que tanto nos ama a ponto de não ver nada mais do que nós
mesmos, não ver o passado nem os caminhos que trilhamos. Ele só vê a nós
mesmos. Um filho, para um pai, é bem mais daquilo que este possa ter feito. O
Pai de Jesus também olha para aquilo que somos, a sua alegria é tamanha que não
vê nada mais do que o que deseja ver: um filho.
Assim, escolher para a conversão, é o
reconhecimento do amor paciente do Pai que vê mais do que nos possamos ver em nós mesmos. Acreditar
realmente que Deus não nos vê como nos vemos e assim projetarmo-nos na visão
que Deus tem sobre nós mesmos. Ninguém escolhe a conversão somente por força de
uma motivação ética ou de necessidade moral; mas a vontade de ver a pessoa que
amamos feliz, esta sim pode nos dar a coragem e a força para adequar o nosso
mundo ao mundo de Deus. Ver a realidade com o olhar de Deus é amor, é vontade
de retribuir ao Pai, dando-Lhe a alegria de perceber que o filho se sente
sempre filho. Somente o amor que gera alegria é capaz de fazer o homem
transcender a si mesmo.
Que o nosso “sim” a Deus seja sempre movido pelo
amor, um amor de reciprocidade que sabe que o nosso Pai nos acolhe sempre e em
qualquer circunstância pouco se importando com o julgamento dos bem-pensantes.
Quanto a nós o amor que podemos ter é um amor capaz de devolver felicidade ao
Pai que, finalmente, consegue ter com o filho a relação que sempre desejou.
II DOMINGO DE QUARESMA
«Uns oito dias depois dessas palavras, Jesus subiu à montanha para rezar e levou consigo Pedro, João e
Tiago. E enquanto rezava, seu semblante mudou de aspecto e sua roupa estava branca e fulgurante. Eis que dois homens se puseram a falar com ele: Moisés e Elias; aparecendo envolvidos de glória, falavam de sua partida que ele ia realizar em Jerusalém. Pedro e os seus companheiros estavam caindo de sono mas, despertando, viram a glória de Jesus e os dois personagens que estavam de pé junto a ele. E, quando estes já iam desaparecendo, Pedro disse a Jesus: “Mestre, como é bom estarmos aqui! Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e a terceira para Elias”. Mas não sabia o que estava dizendo. Enquanto ele falava isso, apareceu uma nuvem que os envolveu na sua sombra; e, quando entraram na nuvem, os discípulos ficaram cheios de medo. Então se ouviu uma voz danuvem que dizia: “Este é o meu Filho, o meu eleito. Ouvi-o”. Apenas cessou aquela voz, Jesus estava sozinho. Os discípulos guardaram silêncio, não contando, naqueles dias, nada do que tinham visto.» (Lc. 9,28-36) A liturgia quaresmal procede seu caminho introduzindo-nos sempre mais no mistério cristão, no ápice da promessa de Deus. Contemplar o que Deus fez é contemplar o que Ele faz. Eterna é a história de Deus escrita nos corações, nos eventos da nossa história particular, nos fatos da história da humanidade. O evento narrado no Evangelho de hoje associa o dia do batismo de Jesus no Jordão, com a antecipação da Páscoa, dia da manifestação plena do dom que Deus preparou par ao homem. O evento narrado evidencia também quela ligação essencial
entre o nosso Batismo celebrado um determinado dia e o Batismo existencial, vivido ao longo da existência quotidiana, através do qual a glória de ser filho de Deus pode resplandecer na vida do discípulo para o bem das pessoas em busca de um sentido para a própria existência. Toda a nossa vida, de modo especial revivida e celebrada nos momentos fortes da liturgia como a quaresma, se manifesta como a expressão de um longo processo pelo qual aprendemos o que significa ser “filho de Deus”, aprendemos a viver o que já somos.
É o que dirá a “voz” que interpreta para os discípulos o evento da Transfiguração de Jesus: «Este é o meu filho, o eleito, escutai-O!». Com a capacidade de “ouvir” -inata no homemcomeça toda a história da salvação, com a capacidade de ouvir ela pode chegar à sua realização. A transfiguração de Jesus diante dos discípulos lhes servirá como garantia antecipada de que a Palavra pronunciada por Deus em Jesus Cristo produzirá, sem dúvida alguma, o seu efeito, exatamente como era a convicção de Isaías: «... Assim será a
palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas realizará aquilo para a qual a designei» (Is.
55,11). Sim, é disso que o Profeta tinha certeza; mas quanto mais verdadeiras são agora as suas profecias uma vez que a palavra de Deus não foi apenas pronunciada mas que se fez viva, visível, operante! ... Agora que a Palavra é Jesus que vive, se faz conhecer,age!
Segundo os Evangelistas, embora se trate de um dom oferecido a todos, parece que a “filiação divina”, meta da ação de Deus para com o homem, não seja um “dado de fato”, um “direito adquirido” pelo simples fato que Deus o oferece indistintamente. Parece tratar-se de um processo pelo qual o discípulo é conduzido pela ação de Deus a «tornarse » (como diz o Evangelho de João) existencialmente aquilo que já é essencialmente.
Tanto o Evangelho de João, quanto o de Marcos veem a filiação como um movimento, como algo que dinamicamente acontece à medida em que o discípulo “mergulha” na realidade que Jesus oferece. Não se trata de um rótulo que define um grupo de pessoas distinguindo-as de outros. É nessa lógica, na dinâmica da filiação divina “já-e-não-ainda”, que se encaixa o texto de hoje. É uma etapa fundamental da vida de Jesus e da sua relação com os discípulos mais estritos, Pedro, Tiago, João. Seguindo essa lógica, a transfiguração de
Jesus antecipou aos três discípulos não apenas aquilo que o Senhor é, mas também aquilo que já existe no discípulo que sabe associar-se ao Senhor; ou seja, uma glória semelhante à Dele; glória que progressivamente vai se manifestando até desabrochar plenamente, se o discípulo se daixar envolver pela mesma nuvem que envolveu Jesus. É o “novo Êxodo” do qual Moisés é sinal.
Mas, vamos tentar uma leitura um pouco mais próxima. A gratuidade é apresentada imediatamente no inicio da história de Deus com o homem; é a marca característica dessa relação. É uma gratuidade responsável e
participativa. Ele dá ao homem a possibilidade de tornar-se “filho” mas Ele não constrói a sua historia com o homem sem o homem. Poucas linhas antes do nosso trecho Jesus questionou várias vezes os discípulos sobre o que pensassem Dele, sobre o que estariam inclines a fazer, se teriam ou não a disposição para carregar uma cruz, aliás, a própria cruz e não outra... Mas as respostas eram vagas, genéricas. No entanto, a viagem de Jesus rumo a Jerusalém continuava e não podia parar esperando que os discípulos entendessem ou dessem uma resposta. Deus não depende da nossa resposta para realizar o seu projeto, mas a nossa resposta pode associar-nos ao Seu projeto, tornar-nos partícipes, sujeitos ativos. Deus vê cada um de nós como participe deste grandioso projeto de felicidade; Abrão, por exemplo, é também figura de cada um de nós, e como nós é convidado a deixar seu pequeno mundo para aventurar-se num mundo que progressivamente se revelaria ao seu olhar, o mundo da confiança na ação de Deus. Assim sendo, seja que os discípulos entendessem ou não, Jesus continuava a sua viagem rumo à Cidade Santa. O Evangelista nos deu uma indicação importante: o fato ocorreu «Uns oito dias depois dessas palavras»; quais palavras? Porque “oito dias depois”? Certamente não se trata de uma indicação cronológica, é claramente um dado teológico e espiritual. As últimas palavras de Jesus que o Evangelho relata, se referiam ao escândalo da cruz, à lógica do insucesso humano, à capacidade de seguir até o fim, entendendo ou não o curso dos fatos. O único que deu uma resposta, Pedro, não parecia muito condizente com uma lógica dessas. Bem, afinal, quem de nós aceitaria agradavelmente o insucesso e a perda? Para nós o resultado é o metro de avaliação dos nossos atos mas, porque para Deus não é sempre assim? Qual é o “metro” Dele? Porque num caminho que necessariamente levará à felicidade devem existir dor e lágrimas?
A Transfiguração não é uma resposta a essas perguntas, mas o que sabemos que ela está “dentro” desse caminho, e não acontece fora dele! Também a citação do “oitavo dia” nos dá uma indicação importante percebida pelos discípulos e narrada no Evangelho. Ela nos remete diretamente ao segundo livro dos Macabeus cap. 2. Ali encontramos vários dos elementos presentes na Transfiguração de Jesus: uma montanha, a “Lei” escondida, a glória, a citação de Moisés, a dimensão sacrifical... Todos esses elementos giram em torno de uma ideia: Jahvé está reunindo em torno de si um novo povo, um povo disposto a ter a “Lei” como centro da sua vida, um “resto do povo”, um “resto” disposto a consagrar-se. A tal atitude positiva de abertura, Jahvé deveria corresponder dando um sinal: enviando uma nuvem que envolveria o seu novo povo, lugar da presença viva da Sua Palavra, assim como o era a arca ad Aliança no deserto (Ex. 40, 34ss). Sim, o novo povo, bem disposto, “resto” entre aqueles que conseguiram permanecer fieis não obstante as pressões da cultura adversa daquele momento; eles seriam o novo povo de Jahvé. Nessa ótica se entende o significado que Jesus deu à Transfiguração. Não foi um gesto espetacular nem demonstrativo: foi um gesto significativo. Naquele momento se antecipava a resposta que Deus daria mais tarde ao próprio Filho, à sua colheita, ao fruto da Palavra por Ele pronunciada que estava ali, na pessoa de Pedro, João, Tiago, o novo povo reunido por Jesus, o “resto”, disposto a consagrar a sua vida ao Senhor. No nosso trecho do Evangelho, a transfiguração é apresentada como obra do Pai; não encontramos a expressão da redação de Marcos: “se transfigurou”, mas sim: «o seu rosto mudou de aspecto» e isso aconteceu enquanto Ele estava em profunda intimidade com o Pai. Eis então indicado um caminho para a nossa fé: a profunda intimidade com Deus se dá não apenas enquanto “sentimos” algo prazeroso que nos atrai, mas quando decidimos, sim, quando decidimos estar no lugar que Deus nos confiou, permanecer até às últimas consequências, assim como se faz com a pessoa amada. De fato alguns elementos da nossa narração, como o “sono” dos discípulos; a solidão de Jesus diante do Pai (apenas num segundo momento são apresentados Moisés e Elias), a proximidade da paixão... tudo nos recorda o drama do Getsêmani, do cálice aceito apenas por amor e decisão de fidelidade. Quando um discípulo acolhe e escolhe a via que Jesus traçou ele também é envolvido pela mesma “nuvem” que cobria a Arca da Aliança, que indicava o “lugar da presença”, que marcava o “ponto de encontro” entre Deus e o homem. Ora, é bem isso que foi oferecido aos três Apóstolos; de ser, analogamente a Jesus, lugar da Presença e ponto de encontro. Algum tempo depois disso, com a Pentecostes, irá se realizar plenamente aquilo que Jesus antecipou como oferta à Igreja de Pedro, Tiago e João. Ela seria o lugar da Presença do Ressuscitado, nova “Lei” viva e eterna e ponto de encontro, sacerdócio, entre Deus e o homem. Pedro, Tiago, João foram convidados a fazer experiência dessa nova realidade, pois eles seriam aquela Igreja à qual Jesus confiaria a missão de anunciar o mistério da
filiação divina. De fato, os sinais da voz, da nuvem, são os mesmos que se encontram no batismo de Jesus; batismo que agora, Pedro, Tiago e João, deveriam oferecer ao mundo inteiro, a homens que, ainda hoje, estão sem esperança, descrentes da vida, sozinhos e desconsiderados. Batismo que indica e realiza uma nova vida, a fim de que eles também sintam que Alguém os quer como filhos, filhos muito amados. Recordar o nosso batismo, vivido na família de Jesus nos dá muito animo e coragem nos momentos difíceis. Uma coisa fica muito clara no sinal que Jesus quis dar com esse evento: há uma profunda indissolubilidade entre paixão, glória e filiação divina. Ser filho é algo que se aprende, assim como se aprende a ser pai. Ser filho é acreditar de ser amado apesar de tudo, acima dos próprios problemas e limites; pois bem, tudo isso se aprende durante o caminho, não antes! Viver como filho é descobrir e saber de ser acompanhado com um olhar discreto e atento em cada passo dado. É confiar que o resultado de nossa vida nunca será um desastre, uma derrota, um percurso tedioso sem outro desfecho que o vazio. Ser filho é sentir o que o pai sente e, assim como um filho é o reflexo daquilo que seu pai é, em cada discípulo autêntico será possível ver o reflexo, o rosto brilhante, a veste cândida, a vida transfigurada: o homem novo. Sobre todos vós que tendes disposição humilde em ouvir, invoco a benção de Arão: «O Senhor te abençoe e te guarde, faça resplandecer seu rosto sobre ti» (Nm. 6,25).
Pe. Carlo
centrobiblicord@yahoo.com.br
I Domingo de Quaresma
«Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. Ali foi tentado
pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome. O diabo disse, então, a
Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão
vive o homem’”. O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo e lhe disse:
“Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isto foi entregue a mim e posso dá-lo a quem quiser.
Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”. Jesus respondeu: “A Escritura diz:
‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’”. Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais
alta do Templo e lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos
seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces
em alguma pedra’”. Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”. Terminada toda a
tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno.» (Lc. 4,1-13).
O caminhar da fé é um longo itinerário, como um crescendo que, em círculos concêntrico, nos
faz progredir em direção a Deus. É como uma espiral, que parece voltar continuamente no seu ponto de
partida, aparentemente apresentando-se como cíclica, repetitiva mas que, na verdade, se assemelha a
um parafuso que afunda no mistério de Deus e, neste mistério firma o coração do fiel. Eis então que
somos convidados a viver continuamente e com maior maturidade o tempo da conversão do coração
que é um contínuo processo de assimilação ao Senhor.
O Evangelista coloca o episódio de hoje em continuidade com a narração do Batismo de Jesus.
E isso não sem lógica, como veremos; Jesus foi abertamente declarado “filho” e manifestado como
Aquele que possui o Espírito em plenitude. O trecho de hoje indica a todo discípulo “o que significa”
ser filho de Deus, qual é o percurso e como reage aquele que quiser seguir Jesus galgando as suas
mesmas pegadas. A liturgia cristã associa o episódio das tentações à grande aventura da conversão,
aventura que começa justamente com o Batismo, através do qual se dá um encontro entre a vontade de
Deus de estabelecer conosco uma relação análoga àquela que há com Jesus e um encontro com a nossa
vontade de aderir e envolver-se nessa relação para o bem da humanidade. Isso é o processo de
conversão. Quem dá o primeiro passo no caminho da fé ou está disposto a renová-lo com a mesma
intensidade do primeiro momento compreenderá muito bem o sentido do Evangelho de hoje. Ele indica
o reinício, a redescoberta do entusiasmo que nos fez dar o primeiro passo em direção Àquele que
sempre nos atrai. É contemporaneamente o momento em que olhamos a verdade sobre nos mesmos, em
que podemos re-escolher o que é mais singelo, autêntico: o que verdadeiramente queremos da nossa
vida. É o tempo da tomada de consciência e aceitação dos nossos limites e, com estes, vem a força de
renovar a certeza de que Deus ama também os nosso limites.
Isso é o que chamamos de conversão. Esta palavra traduz uma expressão grega que indica
“mudança de ponto de vista” (metanoia= literalmente: “ir além do próprio pensamento”), mas não
deixa de ser sugestivo o significado a ela aplicado mais tarde, pela linguagem cristã latina, segundo a
qual a “mudança de ponto de vista” coincide exatamente com o fato de redirecionar tudo para o centro
de nossa vida: “con-vertere”, (“convergir”, diríamos nós). A atitude de contínua conversão é, então, a
ocasião propícia que Deus continua nos oferecendo para mergulhar no mais profundo do nosso “eu” e
perguntar a nós mesmos sobre o que, realmente, move as nossas opções, energias, desejos...
É também o momento da reação à força centrifuga proposta por alguns mitos de uma cultura
que aliena o homem de si mesmo e o projeta num mundo fictício. É voltar a ser o “homem-diante-de-
Deus” -para usar uma expressão Bíblica. O agir de Jesus nos sugere a conversão como retorno à
verdade, como liberdade diante da verdade, como resposta corajosa e generosa à verdade. A imagem
que ressalta imediatamente na leitura é como a de um conflito entre Jesus e o demônio, um conflito que
se dá em três situações e das quais Jesus, assim como cada cristão, tem condições de se sair vitorioso.
Aparentemente, a narração parece apenas a apologia da vitória de Jesus sobre as forças do mal
que tentam desviá-lo do caminho. Parece apenas uma exortação para mantermo-nos firme diante das
investidas do mal, tendo Ele como exemplo. Evidentemente tal ótica tem seu valor em vista de uma
finalidade de tipo moral, mas a nossa preocupação é de tipo existencial, mais profunda, ou seja, é tentar
descobrir, pela Palavra, o que acontece na existência de uma pessoa que deseja aderir a Deus “como”
Jesus o fez. Não podemos parara apenas numa visão de tipo moralista, porque o mundo da fé é mais do
que uma dinâmica -de tipo Maniqueísta- segundo a qual o homem é como um joguete, um dia puxado
pelo bem e outro pelo mal, um dia empurrado pelo diabo que “tenta” e outro pelo Espírito de Deus que
atrai a si. Essa é uma visão que a Igreja recusou desde o terceiro século da sua existência.
Sabemos que o texto é uma síntese catequética das tentações que Jesus viveu no decorrer de
toda a sua vida e que os Evangelistas concentraram num evento único, o qual adquiriu valor de símbolo
para todos os fieis. Este fato aborda o questionamento mais radical que o homem tem quando começa a
caminhar com Deus: ou seja, o “irracional” comportamento de Deus.
Ao longo do nosso caminho na fé, todo questionamento a Deus é positivo, é justo e mais, é sinal
de amor. Existe, todavia um momento em que o questionamento pode se transformar num ato que
“separa” o ponto de vista mais lógico como qual qualquer homem agiria e o comportamento
“incompreensível” de Deus (a palavra “diabo” -do grego, dia ballw,- significa: “que separa”). Ora, a
dificuldade no caminho de fé pode transformar-se em separação quando se colocam restrições a Deus,
quando desejamos reduzir Ele ao nosso modo de ver; geralmente torna-se evidente tal atitude quando
percebemos algo semelhante a o que o demônio fez com Jesus; por três vezes Lhe disse: «se...».
É isso que separa. Não é o fato de não entender o modo de agir de Deus, mas pretender que... ou
seja, quando colocamos condições a Deus, quando exigimos que Ele restrinja o seu proceder à nossa
lógica. No momento em que dizemos «se...» a Deus, renunciamos a segui-Lo e pretendemos que Ele
nos siga. Mas Deus possui uma sua lógica então a consequência é que nós nos “separamos” Dele. Por
isso é que o «se...», como bem é evidenciado neste trecho do Evangelho, procede dos lábios do
demônio pois, enquanto a pessoa se ilude, tendo a sensação de ter o poder e de colocar condições a
Deus, na verdade está realizando o primeiro passo que a isola em si mesma. Quantos mais “se...”
colocarmos na nossa vida, tanto mais estaremos sozinhos. E isto é o inferno.
O “se...” pretende que a vida seja como nós a imaginamos, mas ela é o que é, existe antes de nós
e continua depois de nós. Dizer “se...” a Deus é colocar-se no lugar que compete a Ele, é “sentar no
trono de Deus”, como dirá São Paulo aos Tessalonicenses; é o sinal do “inimigo”, do anti-Cristo;
enquanto, em Jesus, houve «somente o sim» (2Cor. 1,19).
A situação de vida, na qual o fiel pode escolher entre seguir a Deus ou querer de ser seguido por
Deus, na Escritura é chamada “tentação” ou “prova”. Mas o que significa que Deus “prova o homem?”
Obviamente, mais do que ser um sórdido atentado à integridade do caminho de fé, a tentação é uma
situação existencial que faz viver ao discípulo um profundo ato da liberdade. É o momento em que ele
está face a face consigo mesmo, se coloca sozinho (deserto) diante do seu coração. E ali, naquela
profunda liberdade, ele pode decidir. Na condição de “deserto”, quando tudo parece desaparecer e o
nosso mundo está rodeado apenas de silêncio, de não-respostas, de um horizonte sempre igual... ali,
quando não devemos mais “prestar contas a ninguém” a não ser à nossa consciência e a Deus, ali
mesmo é que se pode fazer a escolha mais livre da nossa vida. Uma escolha que poderá determinar para
sempre o futuro.
Contrariamente a um certo moralismo que vê a tentação como uma fraqueza do nosso caminho,
ela não é um acidente do percurso: é o próprio percurso. Veja-se, por exemplo, quando Deus chamou
Abrão; o próprio ato de chamar foi indicado pelo Escritor do Gênese como uma “tentação”: «Deus
provou Abrão dizendo: “Abrão, Abrão”. Ele respondeu: “Eis-me aqui”» (Gen. 22,1) e foi desse diálogo que
nasceu a nossa fé. Na grande maioria dos casos a Escritura tem uma visão positiva e vê neste modo de
agir de Deus um momento em que Ele se faz sentir mais perto. Às vezes a tentação é sentida como um
ato de atenção por parte de Deus, como no caso de Judite: «Irmãos, além do mais, agradeçamos a Deus que
nos tenta assim como já o fez com os nossos pais.» (Jdt. 8,25) ou do Salmista da qual sente falta: «Examina-me,
Senhor e prova-me; sonda-me o coração e os pensamentos.» (Sal. 26,2) para conhecer a verdade sobe a sal
relação com Deus.
Todo dia pedimos a Deus que Ele nos ajude a não “cair na tentação”, a não renunciar, a não
exigir que o Senhor use os caminhos que nós desejamos, mas que sejamos sempre capazes de seguir os
seus caminhos, mesmo que aparentemente “irracionais”.
Também aqui, no nosso texto, a tentação é associada diretamente ao Espírito, não é um
“teste” do Pai para conhecer a fidelidade do Filho (Jesus não precisava disto e nem o Pai, seria absurdo
pensar o contrário). É o caminho do Espírito. E isto é tanto mais evidente se considerarmos que o
trecho de hoje é colocado logo após o batismo de Jesus, quando Ele é declarado “Filho amado”. Ora,
São Paulo vem em nossa ajuda dizendo-nos que: «Todos os que são guiados pelo Espírito são filhos» (Rm.
8,14) o que, em outras palavras, significa que quem Deus reconhece como filho é movido pelo Espírito.
Se o Batismo foi a declaração de Jesus como Filho, o ato com o qual Deus O reconhece é a tentação: o
longo caminho do Espírito que continuamente e eternamente gera a comunhão.
Então, assim como aconteceu com Jesus, todo fiel que adere a Deus, recebe a mesma
proposta: ser conduzido pelo Espírito.
Ora, aonde conduz o Espírito de Deus? Por quais caminhos Ele gera comunhão com o Pai?
Aqui o texto nos indica explicitamente quais caminhos Ele percorre.
O primeiro ensinamento que nos é sugerido, é que essa ação que conduz para um encontro
sempre mais profundo com Deus, é acima de tudo o resultado da ação do Espírito Santo e é o primeiro
passo para cada batizado. Lucas diz que Jesus está «Cheio do Espírito Santo»; o evangelista Mateus é
ainda mais incisivo: «Movido pelo Espírito Santo», seja como for é clara a convicção que em cada pessoa
o movimento que leva a amadurecer o encontro com Deus vem do Espírito e é imediatamente
consequente ao Batismo e acontece no deserto. Ali na ausência de respostas claras e satisfatórias, o
Espírito nos encaminha na sua mesma direção de Jesus, imprime em cada batizado «os sentimentos que
foram em Cristo Jesus» (Fil. 2,9) Cada um de nós é questionado no mais intimo de si mesmo, naquele
lugar onde está realmente sozinho, aonde parece que todas as certezas tenham evanescido, quando não
se têm ninguém a quem apresentar uma fachada... no deserto de sua alma.
O Espírito Santo revolve o nosso mais íntimo assim com o arado faz com a terra, para que
aflore realmente todo o nosso ser, aquilo que está debaixo do que se vê! É uma ação penetrante que
acontece onde ninguém teve coragem de colocar o dedo, naquele lugar que somente nós e a nossa
consciência sente. Paradoxalmente, bem ali, quando não temos mais nada a demonstrar a ninguém,
somos livres. Sim, livres de fazer as escolhas mais autênticas de nossa vida. Quando o que realmente
nos importa é o significado de nossa existência e nada mais. Não interessa mais o que faremos, o que
pode acontecer, o que os outros vão pensar.... quando existem coisas maiores em jogo. È isto que o
Espírito faz: conduz no deserto a fim de que nós nos conheçamos realmente, vejamos livremente o
nosso rosto como num espelho não distorcido. Isto às vezes dói, em muitos casos algumas pessoas
chegam a este profundo momento de liberdade após lágrimas, erros, histórias conturbadas... para cada
um Deus tem um caminho. Então, como julgar as estradas que as pessoas percorrem? Seus tropeços,
suas curvas tortuosas...? Para todos Deus garante que tocará o mais íntimo a fim de que cada um possa
dar sua resposta de liberdade.
O Espírito não camufla, não esconde, não ilude com sensações e emoções, Ele «conduz», isto é,
passo a passo, pacientemente, faz encontrar o fiel consigo mesmo, com o mais profundo do seu “eu”
onde pode convergir com todas as suas forças, amar-se assim com é e ser livre para doar-se. Esta
característica do Espírito de Santidade é descrita por João Paulo II com estas palavras: «È exatamente
em relação a esta profundidade abissal do homem, da consciência humana, que se cumpre a missão do
Espírito Santo» (Dom. Viv. 45).
O Espírito nos conduz, sozinhos, para que possamos ver somente a nós mesmos, sem desculpas
ou justificativas, quase que num “deserto” onde conflitam a divergência entre o nosso agir e o estilo de
Deus agir. E ali encontramos o que Jesus encontrou: a fome, símbolo de tudo quanto nos faz conhecer a
nossa verdadeira natureza, que nos coloca no lugar que nos pertence, que é capaz de por fim a qualquer
resistência e força... A “fome” nos diz que não somos deuses mas pessoas humanas. Encontramos gosto
do poder, gosto maior do que o da riqueza, pois a riqueza é privilégio de alguns, o poder está nas mãos
de todos; todos têm o seu poqueno-grande poder. O poder sempre nos diz quem somos,
independentemente da dimensão que este tenha. Quando procuramos ou servimos o poder sabemos que
estamos dando início ao culto do nosso “eu”.
No Evangelho Jesus aparece como aquele que permanecerá fiel a Deus sem alguma vantagem
pessoal, sem nenhuma ambição (pois esses são os elementos que dificultam a realização do projeto de
Salvação). Jesus não usa o poder que de fato possui e que pode usar como e quando quiser... Ele age ao
contrário da lógica humana, segundo a qual o princípio é fácil: se posso, porque não usar? Eis que se
renova assim o conflito que está na base do drama do pecado original. Não há aqui como descrever o
conteúdo das três tentações, basta apenas dizer que são os pontos comuns a todas as circunstâncias da
nossa vida em que somos chamados,com no dia do Batismo, a manifestar a nossa posição diante de
Deus e do Seu projeto. Uma única certeza nos é dada pelo Evangelista: sempre quem aparece como
derrotado é o demônio; ele é absolutamente impotente quando o homem responde não com suas armas,
mas com a força da Palavra que Deus dá.
Pe. Carlo Battistoni
centrobiblicord@yahoo.com.br
I Domingo de Quaresma
III Domingo do
tempo Comum
«Muitos empreenderam compor uma
história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como no-los
transmitiram aqueles que foram desde o princípio testemunhas oculares e que se
tornaram ministros da palavra. Também a mim me pareceu bem, depois de haver
diligentemente investigado tudo desde o princípio, escrevê-los para ti segundo
a ordem, excelentíssimo Teófilo, para que conheças a solidez daqueles
ensinamentos que tens recebido. Jesus então, cheio da força do Espírito, voltou
para a Galileia. E a sua fama divulgou-se por toda a região. Ele ensinava nas
sinagogas e era aclamado por todos. Dirigiu-se a Nazaré, onde se havia criado.
Entrou na sinagoga em dia de sábado, segundo o seu costume, e levantou-se para
ler. Foi-lhe dado o livro do profeta Isaías. Desenrolando o livro, escolheu a
passagem onde está escrito (61,1s.): “O Espírito do Senhor está sobre mim, por
isso me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os
contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a
restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da
graça do Senhor.”. E enrolando o livro, deu-o ao ministro e sentou-se; todos
quantos estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Ele começou a
dizer-lhes: Hoje se cumpriu este oráculo que vós acabais de ouvir.».
(Lc. 1,1-4; 4,14-21)
É uma característica própria de Lucas dar um realce
notável a toda a dimensão de oração, pois é justamente essa dimensão que nos
permite de manter vivo o diálogo com Deus. A revelação do Pai que Jesus estava
começando a oferecer aos homens é uma revelação de comunhão, logo, o lugar mais
apropriado para começar a sua missão é justamente o lugar onde o homem e Deus
se encontram face a face: na oração.
Se fizermos de uma simples comparação com os outros Evangelistas
perceberemos imediatamente a sensibilidade de cada um deles e, com esta, a
indicação que eles nos sugerem para o nosso caminho de fé ao encontro com o
Senhor.
No domingo passado vimos que, para o Evangelista João, Jesus se faz
presente na vida dos homens oferecendo uma alegria que nenhuma festa preparada
só com meios humanos pode oferecer. O Evangelista Marcos nos mostra Jesus que
liberta o homem dos seus medos e prisões. Para Mateus Jesus se encontra com os
homens chamando-os e dando-lhes uma nova lei que é livre das regras mas que tem
como regra o amor. Aqui estamos diante de uma outra dimensão do encontro com
Jesus.
Percorramos os passos que Lucas nos sugere.
O ambiente é a cidade de Nazaré. Jesus estava voltando
depois de ter enfrentado, no deserto, as três grandes tentações às quais todo
homem está sujeito, são as tentações que o demônio propõe como sendo os meios
mais fáceis para alcançar os nossos objetivos, ou seja: o poder, a riqueza e o
desafio à perspectiva que Deus sugere.
Jesus voltava como volta todo homem que enfrenta e supera uma grande
tentação, é um homem que se sente esvaziado de todas as suas certezas... mas é
bem nesse vazio que Deus pode infundir o Seu Espírito. O Evangelista aplica
também a Jesus aquilo que acontece com cada homem que se deixa conduzir por
Deus: «Jesus então, cheio da força do
Espírito, voltou para a Galileia»,
diz o Evangelista. Quando fazemos experiência da fragilidade das nossas forças
diante das tentações, contemporaneamente fazemos experiência da «da força do Espírito», como diz Lucas em relação a Jesus. É apenas a força do amor que resta,
quando tudo cai! Como foi para Ele é para todo cristão: a força do Espírito se
sente quando termina a força na qual confiam os homens. É uma força que possui
firmes raízes porque afundam num profundo ato de confiança e entrega a Deus
como sabe fazer apenas quem renuncia a si mesmo.
Nazaré é o primeiro lugar onde aconteceu o anúncio do Evangelho; nesse
episódio temos também a indicação de como o Evangelho se espalha. Na Sinagoga
vemos a missão de Jesus, mas também o espelho da nossa; é uma missão cuja força
envolvente só é possível quando, dentro do nosso coração, já aconteceu a
renúncia aos meios que as tentações sugerem. É preciso renunciar a tais meios,
porque a missão é obra de Deus e deve ser desenvolvida com meios divinos.
Ninguém pode anunciar a palavra de Deus se Deus não estiver no centro de sua
vida, de suas decisões, dos afetos e da lógica do seu proceder. O risco que se
corre, agindo de outro modo, é o de anunciar a si mesmo, até revestindo-se de
uma veste religiosa.
As pessoas bem dispostas que estavam ouvindo Jesus respondiam com um
profundo sentimento de admiração. Em outro contexto as pessoas que ouviam falar
Jesus diziam: «Ele fala com autoridade, não como os
escribas» (Mt. 7,29). Sim, porque
apenas as palavras cheias da força do Espírito falam ao coração do homem
sedento de Deus, tudo o mais são simplesmente palavras bonitas sim, mas
incapazes de transformar, de libertar, de gerar aquela «graça» da qual
o nosso trecho fala. Se é verdade que o Espírito Santo é um dom, é outro tanto
verdade que Ele vem num terreno já lavrado, o terreno do homem aberto, disposto
e, por isso, fecundo. O dom de Deus não é vinculado ao agir do homem, mas sem
que ele ponha as condições oportunas o dom não produz o efeito para o qual é
enviado.
O ambiente é uma Sinagoga, o lugar específico onde o
judeu se encontrava com Deus nos momentos estabelecidos, especialmente no
sábado. Jesus, diz o Evangelista, «entrou na
sinagoga em dia de sábado, segundo o seu costume». A evangelização não é a imposição de uma doutrina nova que vem de fora e
se estabelece violentando os meios que as pessoas escolhem na própria vida para
se encontrarem com Deus. O autêntico anúncio do Reino não prescinde das
escolhas que as pessoas fazem, simplesmente as potencia. A escolha de Jesus de
participar do rito da Sinagoga, mesmo que Ele tivesse uma outra maneira de se
relacionar com o Pai, é um sinal muito importante que nos indica como pensava
Jesus; ou seja, não é preciso substituir a maneira própria que as pessoas têm
para buscar a Deus, pois é Ele que vai no lugar onde as pessoas estão, e vai no
momento em que as encontra reunidas e dispostas, humildes e atentas. Era assim
que agia a maioria daquelas pessoas, que dedicavam o sábado a Deus.
A liturgia do sábado tinha o sentido –como para as nossas missas do
domingo- de santificar o conjunto da semana. Significava oferecer todo o tempo
transcorrido como ação de graças a Deus pelos bens recebidos, com o intuito de
santificar aquilo que por si próprio era profano, comum. Em outras palavras,
reconduzindo tudo a Deus num dia específico para Ele, consagrando a Ele o tempo
vivido, esse mesmo “tempo” é santificado; não é mais apenas um “cronos”, um
transcorrer de horas, mas um momento “propício” (kairos), isto é, “cheio de graça”. O Sábado era o dia em que o
humano se unia com o divino, conforme escrevia o Autor do livro de Gênese.
Jesus participou daquela liturgia como leitor. Sabe-se que quando alguém
era convidado pelo Rabino para fazer a leitura, podia também comentar a
leitura. Quando o leitor queria dar um peso significativo às suas palavras o
fazia por meio de um gesto simbólico: sentar na frente de todos. Isto Jesus o
fez, indicando assim que aquilo que estava prestes a dizer era carregado de
autoridade, que não era uma explicação qualquer. O comento de Jesus não foi de
índole didática: tudo apontou para uma palavra: “hoje”, “hoje se cumpriu”... e
não disse mais nada!
Mas como terá ressoado aos ouvidos dos piedosos judeus essa expressão de
Jesus? O que significava uma tal maneira estranha de comentar um trecho tão
famoso e objeto de tantas especulações dos rabinos?
Arrisquemos em colocar-nos do ponto de vista deles, por etapas.
O sentido mais imediato parece ser o fato de que Jesus estivesse se
apresentando e o fazia dizendo que, com a sua presença, todas as expectativas
do profeta Isaías estavam sendo realizadas, que não haveria mais nada a
esperar. Deus, o Emanuel prometido estava de fato no meio de seu povo,
partilhando e vivendo aquilo que o seu povo vivia. O Messias, ungido do Senhor,
estava ali para guiar definitivamente o seu povo rumo à plena realização de sua
vocação e história.
Apontando implicitamente para si mesmo colocava os ouvintes numa posição
que não teria escapatórias: confiar ou não. Dar crédito ou buscar qualquer
motivação para não dá-lo. Afinal como era possível que, de repente, aquilo que
somente existia na mente das pessoas projetado num futuro tão distante, quase
evanescente, pudesse estar bem ao alcance de todos? È realmente delicada uma
situação dessas pois, enquanto algo está relativamente distante de nós, é
facílimo opinar, dar soluções, até sentirem-se capazes de gestos e atitudes
desinteressadas, generosas etc. mas quando este “algo” está tão perto de nós
que nos envolve diretamente... pois bem, a coisas mudam, e mudam bastante!
Quando Deus se faz presente em nossa vida numa forma explicita a consequência
imediata é que isso nos questiona e, assim, nos revela realmente quem somos nós
antes de revelar-nos “quem” é Deus.
O primeiro gesto de Jesus é ensinar. A palavra ensinar não significa impor
informações novas (como frequentemente se pensa); ensinar significa “sinalizar,
indicar o caminho”. Mas é um caminho que todo homem deve percorrer sozinho
porque assim fazendo se percebe como sendo autor vivo e responsável da sua
própria vida. Um homem que é arrastado, conduzido, não é “ensinado”. É
“ensinado” apenas um homem que aprende a escolher na liberdade e sabe, por
isso, para onde conduzir a sua vida. É isso então que o Evangelista nos aponta
como o primeiro gesto de Jesus para conosco. O primeiro gesto de libertação é
aprender a enxergar um caminho novo, é deixar-se indicar perspectivas não
imaginadas por nós mas claras na lógica de Deus. Ele não se impõe, mas sim, a
partir do lugar onde estamos, indica o caminho que conduz àquilo que desejamos.
Do agir de Jesus podemos deduzir mais uma indicação importante para a nossa
vida, principalmente se estivermos envolvidos em alguma atividade pastoral.
Jesus não interpretou a sua ação como um
projeto pessoal a ser realizado com meios próprios que independem de toda uma
história. Jesus se refazia a todo o projeto do Pai, a toda a história passada a
qual não pode simplesmente ser substituída, como arrogantemente alguns fazem
pensando de assim oferecer coisas “novas”, mais “modernas”. O anúncio do
Evangelho respeita toda a história percorrida, passo a passo, pois é esta
história passada que dá fundamento ao «hoje» do qual fala o nosso trecho. É isso tudo que
chamamos de “tradição”, é o conjunto do patrimônio de um longo caminho
percorrido.
Disso tudo decorre um terceiro elemento: Jesus interpretou a sua missão
como uma obediente resposta ao Pai: «por isso me
ungiu; e enviou-me». Ao considerar o
modo de ver de Jesus podemos deduzir mais um ensinamento para a nossa vida de
fé. Enquanto tivermos viva a consciência de sermos enviados, estaremos sempre
livres da grave tentação de sermos os “autores da salvação”, de sermos os
últimos responsáveis de tudo e, pior, de apoderarmo-nos de algo que está acima
de nós. Não sabemos nem saberemos jamais
quais são os caminhos que Deus escolhe para conduzir as pessoas a Si e
nem o tempo que Ele precisa. Saber e recordar que somos enviados, exige
intrinsecamente que aprendamos a escutar, exatamente como fizeram os ouvintes
na sinagoga. A escuta é humilde, a presunção, ao contrário, se veste de
autossuficiência, mesmo no uso das coisas que dizem respeito a Deus. Como
pretendemos falar palavras de “graça” se não formos capazes de ouvir a Fonte da
graça?
Me permito de identificar mais um quarto elemento. A missão de Jesus não é
um simples anuncio, mas sim é um anúncio que visibiliza a efetiva capacidade de
Deus de responder aos anseios mais profundos do homem. Deus pode! É isso que
Jesus veio dizer. Deus pode e se você
confia Ele o fará para ti. Gestos, palavras, atitudes, decisões da vida de
Jesus serão o lugar onde será sempre possível ver a fidelidade de Deus às suas
promessas, a fidelidade de Deus ao homem que tanto ama. É nessa ótica que o
Senhor interpretou e aplicou a si mesmo as palavras de Isaías citadas na
leitura daquele dia: «anunciar a boa
nova aos pobres, sarar os contritos de coração, anunciar aos cativos a
redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos,
para publicar o ano da graça do Senhor». Estes não são tão somente atos de bondade e piedade para com os homens,
são sinais de que Deus é capaz de cumprir, de levar até o fim a sua obra em
favor dos homens e, tais gestos, são a antecipação: «hoje».
Se é possível “hoje” significa que de fato é possível até o fim dos tempos.
Aquela que Jesus pronunciava era uma palavra que estaria totalmente ligada
à sua vida, não era fruto de ideias, sensações, fantasias... era a vida na vida
do Senhor.
É assim que podemos eficazmente anunciar
o Evangelho; podemos fazê-lo com autoridade apenas quando a Palavra do
Senhor tiver tomado as fibras mais íntimas da nossa vida e assim, cada gesto
será simplesmente a visibilização, a atualização no hoje de cada tempo da
“graça” que Deus oferece aos homens, mergulhando-os no Espírito que é a Sua
presença
O “hoje” de Jesus, não tem somente um cunho temporal, como distinção do
ontem e do amanhã. A expressão tem um cunho religioso e mistérico bem antigo;
indica algo que se realiza “quando....” ou seja, o tempo profano, comum, se
torna tempo “de Deus” quando se realizam
determinadas condições. É como quando nós dizemos: “é hoje...!”. Assim sendo, o
tempo é visto mais na perspectiva da qualidade do que de quantidade, como
passar de horas. “Hoje” indica o tempo
propicio de salvação, de pleno significado da existência e realização das
expectativas santas. É um “hoje” eterno que faz experimentar a potência e a presença
de Deus toda vez que se realiza aquilo que Jesus veio fazer: «anunciar
aos pobres a boa nova, aos prisioneiros a libertação, aos cegos a vista,
devolver a liberdade aos oprimidos, anunciar a gratuidade do Senhor».É
um hoje que se cumpre nos corações daqueles que vivem o que Jesus se sentiu
“enviado” a viver.
Nos surpreende mais um aspecto: a missão, o sentir-se enviado ao outro não
apenas dá esperança a quem está sem esperança, mas possui um efeito de
reciprocidade. Isto é, a salvação, o “hoje” que dá uma luz nova ao outro,
acontece contemporaneamente em quem anuncia e se dá justamente enquanto ele
“devolve a vista ao cego” que está bem ao seu lado e que pena porque sua vida
se transforma em tediosa depressão enquanto não vê saída...
O “hoje”, o momento propício, podemos percebê-lo justamente enquanto
anunciamos ao outro a gratuidade de Deus, um Deus que não cobra, não oprime,
não quer se substituir a nós, mas apenas deseja ficar ao lado. Tudo isto é tanto mais eficaz -parece dizer o
Evangelho- quanto mais íntima e envolvente for a consagração a Deus, a “unção”,
que indica contemporaneamente a escolha que Deus faz do homem e a
disponibilidade dele a deixar-se
penetrar pelo Espírito, assim como o óleo penetra na pele tornando-a
macia. Presença dócil e forte do Onipotente.
Data 10/02/2012
IV Domingo do tempo Comum
«Jesus começou a dizer aos que o ouviam: “Hoje se cumpriu
esta palavra aos vossos ouvidos”.
Todos lhe davam testemunho e se admiravam das palavras de graça, que procediam da sua boca, e diziam: “Não é este o filho de José?”. Então lhes disse: “Sem dúvida me citareis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; todas as maravilhas que fizeste em Cafarnaum, segundo ouvimos dizer, faça-o também aqui na tua pátria. E acrescentou: Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria. Em verdade vos digo: muitas viúvas havia em Israel, no tempo de Elias, quando se fechou o céu por três anos e meio e houve grande fome por toda a terra; mas a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia. Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã”. A estas palavras, encheram-se todos de cólera na sinagoga. Levantaram-se e lançaram-no fora da cidade; e conduziram-no até o alto do monte sobre o qual estava construída a sua cidade, e queriam precipitá-lo dali abaixo. Ele, porém, passou por entre eles e retirou-se.» (Lc. 4,21-30).
Todos lhe davam testemunho e se admiravam das palavras de graça, que procediam da sua boca, e diziam: “Não é este o filho de José?”. Então lhes disse: “Sem dúvida me citareis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; todas as maravilhas que fizeste em Cafarnaum, segundo ouvimos dizer, faça-o também aqui na tua pátria. E acrescentou: Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria. Em verdade vos digo: muitas viúvas havia em Israel, no tempo de Elias, quando se fechou o céu por três anos e meio e houve grande fome por toda a terra; mas a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia. Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã”. A estas palavras, encheram-se todos de cólera na sinagoga. Levantaram-se e lançaram-no fora da cidade; e conduziram-no até o alto do monte sobre o qual estava construída a sua cidade, e queriam precipitá-lo dali abaixo. Ele, porém, passou por entre eles e retirou-se.» (Lc. 4,21-30).
O Evangelho de hoje é a continuação do episódio
sobre o qual refletimos a semana passada quando, lá na Sinagoga de Nazaré,
Jesus deu início ao seu ministério de anuncio do Reino de Deus. Jesus havia
terminado de ler o trecho de Isaías e apresentava-se como sendo Aquele que Deus
havia enviado para que todos pudessem conhecer o Seu verdadeiro rosto, em
particular os mais fragilizados: cegos, coxos, pobres, enfim, aqueles que se
achavam abandonados por Deus e pelos homens. O anúncio que Jesus fez naquela
circunstância consistia fundamentalmente de dois elementos muito importantes
mas que facilmente as pessoas esquecem, ou seja: o primeiro é que Deus está
perto daqueles que, por razões diversas, chegam a dizer a si mesmos que Deus
“se esqueceu” deles. O segundo tema do anúncio é «um ano de graça» para todos; com esta expressão comumente se deixava a entender o ano do
“jubileu” do qual se trata amplamente no Livro do Levítico (cap. 25). Era um
“ano” que tinha uma função de extremo valor porque reconduzia o homem à sua
dignidade liberdade inicial, com a qual Deus o havia feito. Todos os vínculos
eram soltos, as dívidas apagadas de modo que cada um estivesse diante de Deus
“como” Deus o havia feito, livre de tantas angústias acumuladas por erros
cometidos. Embora na prática dificilmente acontecia o que era proposto, se
tratava realmente de um elevadíssimo instrumento para recuperar a dignidade das
pessoas e a unidade de um povo diante de um único Deus. Pois então, era essa
condição de re-novação diante do Pai que Jesus estava anunciando.
Jesus estava mostrando que os tempos da espera estavam encerrados e que
agora se tratava de viver os tempos da presença de Deus a qual pode ser
claramente reconhecida quando se percebem duas características: proximidade e
graça. Esse é o Deus que Jesus anuncia. É um Deus que está perto quando ainda
achamos que esteja longe, que nos tenha deixado, que tenha «escondido o seu
rosto» (cfr. Sal. 69,17). É um Deus
que se faz conhecer pela sua «graça», pela
sua gratuidade que não cobra, ao contrário do que faz a “lei” (entendida apenas
como instrumento para declarar-se “quites” diante de Deus por ter obedecido a
todos os preceitos). O amor a Deus nasce assim, nasce quando se reconhece Nele
a proximidade e a gratuidade; é isso que Jesus mostrará com a sua vida às
pessoas que encontrará daquele momento em diante: é o Reino presente.
Todavia, diante dessa nova fisionomia coma qual o Pai é anunciado, o homem
é solicitado a fazer uma escolha radical, uma escolha única, uma escolha
existencial, num tempo sem tempo, no “hoje” em que tudo se decide, e que se
repete constantemente em inúmeras circunstâncias da vida.
Era o Reino presente, era Jesus agindo, era o homem que podia ser livre por
sentir-se amado, mesmo se cheio de problemas.
O «hoje se cumpriu» disse então Jesus.
O episódio é extremamente rico de ensinamentos e dicas para a nossa vida de
fé, no entanto gostaria de pousar a nossa atenção apenas sobre dois elementos
que compõem o texto isto é, o lugar onde se cumpre a Escritura e o efeito do
anúncio.
O trecho de Isaías ao qual Jesus se referia aponta
para o “ungido” de Deus, logo aponta para uma escolha, uma escolha que Deus faz
em função de uma missão. A expressão e o gesto de unção, na Escritura são
sempre ligados a estas duas dimensões. O fato de que Deus escolhe não é um
privilégio pessoal que exclui ou separa alguém dos outros, mas sim é uma
escolha própria para que Ele, Deus, possa chegar através do escolhido a outras
pessoas, principalmente àquelas que menos têm as condições de sentir Deus
perto. Ser “ungido” não é uma característica própria de um indivíduo (às vezes
escutamos expressões como esta: “ele é realmente ungido....” para indicar
alguém que tem algumas qualidades) a “unção” não é uma qualidade ou aptidão de
uma pessoa, é uma escolha que Deus faz e, após a resposta positiva de quem é
“convocado”, Deus dá os dons necessários para desenvolver a missão confiada a
ele em função de outros. É isso, por exemplo, que nós manifestamos ritualmente
no sacramento do Batismo, da Crisma e da Ordem: os três nos dão as condições
–cada qual dentro de seu específico- de desenvolver a missão que Deus deseja
nos confiar em função de outros; seguindo a linguagem de Jesus poderíamos
dizer: “coxos, cegos, surdos”...
O Evangelho diz que Jesus “ensinava”, ou seja, não
estava fazendo milagres, fato este que lhe foi questionado mais tarde por
alguns dos ouvintes. Como se explicava que Jesus não tivesse feito milagres
dentro da própria Sinagoga como fez alhures? A desconfiança dos ouvintes é
posterior à decisão de Jesus de não operar milagres; então o que Jesus estava
dando a eles, se entre eles havia também cegos etc.? Era fácil imaginar a
reação dos bem-pensantes que estavam ali para o culto: «...
faça-o também aqui na tua pátria». Todos esperam algo que seja “bom” para si e, quanto
mais cedo e ostensivamente isso acontecer, tanto melhor e tanto mais venerado
será Aquele que o concedeu. É a “graça
barata” da qual fala Dietrich Bonhoeffer (um teólogo luterano, que morreu
no campo de prisão na Alemanha em 1945). É uma “trágica ilusão” sobre Deus, que
pretende reduzi-lo aos nossos interesses privados e imediatos!
Jesus estava dando algo a mais, não tanto um comum
milagre capaz de satisfizer a curiosidade e o bem-estar de alguns a pouco
preço.
Creio que possamos considerar útil para a nossa
vida de fé esse modo de agir de Jesus que, nem sempre entra em contato conosco
com o milagre, mas nos dá sempre indicações, “ensina” o caminho do encontro.
Também nesse caso o fez, através da expressão: «Hoje se cumpriu
esta palavra aos vossos ouvidos». O que significa? O acento pode ser colocado na última
parte: «... aos vossos ouvidos»; essa segunda parte da expressão se refere aos
outros, a nós; enquanto a primeira parte se referia a Ele mesmo. O que se
“cumpriu” não é somente Nele enquanto Ungido, mas também no próprio homem e
exatamente “em seu ouvido”. Ou seja, é quando o homem aprende a ouvir que percebe
também o chamado de Deus, a Sua escolha, o Seu Espírito, a “unção”... Quando o
“hoje” encontra o seu “cumprimento” em nós sem delongas e sem “mas”, então o
projeto de Deus também vai tomando forma sempre mais visível para os «coxos, cegos, surdos». Dizer que “se cumpriu” significa que se concretiza a
possibilidade de um novo mundo a partir do “ouvido aberto”. Quando alguém sabe
escutar se cumpre “em seu ouvido” o desejo de Deus Pai e
nasce nele a força que transforma, que faz acontecer a promessa de um mundo
onde há espaço para todos.
É essa é a condição do
homem em relação a Deus ou seja, ele não é um eterno incapaz sujeito à
necessidade de milagres para afirmar a sua adesão a Deus! É sim um homem
responsável do futuro quanto a si mesmo e ao seu mundo, o qual pode e vai ser
transformado “hoje”, com a sua decisão e com o efeito que a Palavra opera no
seu ouvido aberto. É uma Palavra que
aumenta o bem, que já está presente no mundo, à medida em que responde ao mal
com o bem, assim como Jesus tentará explicar através de imagens e palavras
incisivas do tipo: «...não te digo até sete vezes, mas
setenta vezes sete» (Mt. 18,22), ou: «Eu,
porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem» (Mt. 5,44). Que uma pessoa chegue a isso, não é mais do que um milagre?
Quanto ao segundo aspecto que gostaria apontar
para a reflexão, se evidencia na frase do Evangelista: «se
admiravam das palavras de graça, que procediam da sua boca». Existem palavras e
palavras; «palavras vãs» (Efá. 5,4) e palavras «cheias de graça». Essas são as que nos interessam.
Jesus associou o seu anúncio à “graça” que o
próprio anúncio traz consigo. Isso foi um dos temas fundamentais de toda a
pregação de São Paulo pois foi exatamente o que ele sentiu em relação a Jesus.
O que isso significa? Pois bem, anunciar com palavras, atitudes e escolhas de
vida que Deus está perto, que vê, que liberta e cura o homem ferido, sem
cobranças ou preceitos e regras a ser seguida para merecer um o outro milagre,
enfim “gratuitamente”, isso gera um profundo sentimento de gratuidade, de
“graça” também em quem recebe. Tal sentimento pode ficar frustrado ou ser
cultivado; quando cultivado se transforma em livre vontade de devolver com a
mesma intensidade com a qual se recebeu. Ora, isso é a salvação: um intercâmbio
contínuo de amor gratuito que sempre supera a si mesmo, exatamente como
acontece no coração do próprio Deus Trindade. A melhor imagem que temos disso
nos vem do episódio dos dez leprosos: todos foram curados, apenas um foi
“salvo”, aquele que devolveu a Jesus com a mesma intensidade com que havia
recebido (o gesto de ajoelhar-se não era apenas “agradecimento” formal,
significava colocar a própria inteira vida à disposição de Alguém!). Isso é o
que salva, que faz entrar na dinâmica do amor.
Muito significativa, nesse sentido, é a afirmação
da Carta aos Efésios: «Pela graça sois salvos, mediante a fé;
e isto não vem de vós; é dom de Deus; para glória de Deus » (Ef. 2,8); não creio que tenhamos uma síntese melhor para indicar o que
entende o Evangelista quando diz que as palavras de Jesus eram «cheias de
graça».
Especialmente hoje,
infelizmente o que conta é o
merecimento. Tudo se mede e se avalia conforme um metro e, esse metro dita a
lei quanto ao mérito de algo. Um agrado, um presente, um diploma, uma
promoção... tudo é medido. Tal modo de encarar as relações com os outros e
conosco mesmos não deixa de ter sentido; mas será que é tão inocente assim como
parece essa visão das coisas? Não será que isso é o resultado da incapacidade
de receber gratuitamente algo de alguém, uma vez que estamos sentindo-nos cada
vem mais seguros em nosso isolamento? Sim, isto acontece também porque receber
algo sem o merecer deixa um certo desconforto a quem não está mais acostumando
a viver em relação com outros. Sim, porque tal gesto nos questiona até o mais
íntimo de nós mesmos. Questiona a escala de valores que assumimos como
parâmetro da nossa vida.
Por que receber algo não merecido se toda a minha vida fui treinado para
conquistar e merecer algo que consegui com as minhas mãos? E o que devo fazer
com isso que ganhei? Um dom recebido de algum modo sempre me liga a alguém;
isso não é confortável para quem está acostumado a assumir como um dogma já
consolidado o mito da independência. A gratuidade é incomensurável, e por isso
questiona.
Pois bem, é isso que Jesus anuncia: a absoluta gratuidade de Deus para com
o homem. Anuncia Deus que se “inclina para olhar” (este é o significado da
palavra “graça” na língua da Bíblia); são estas as palavras que Maria aplicou a
si mesma e que Lhe deram a chave de compreensão de tudo o que Lhe estava
acontecendo.
O mundo de quem aprende que não existe a “independência”, que não é preciso
sempre viver com o “medo de dever” algo a alguém é um mundo mais humano. O
mundo de quem aprende que existe também o Amor,
e que o amor é simplesmente é o que é e, então, se expressa em atos de
amor, pois bem, esse mundo é um mundo mais humano!
É esse o dom que Jesus está pronto a dar com a sua vida, o dom de tornar a
vida do homem mais humana. Um mundo mais feliz, não porque recebe, mas porque
aprende a dar sem medida, uma vez que se sente envolvido por um amor que não
conquistou, mereceu, comprou.
As palavras de Jesus são carregadas «de graça»,
cheias desta atitude de graça: dom dado que gera no coração de quem está
disposto a receber, a capacidade de dar gratuitamente, como Jesus. Retomando a
frase de Paulo: «...salvos, mediante a fé », com certeza descobrimos que uma vida vivida em
ação de graças não é uma vida cômoda, apaziguante, não é uma “graça barata”,
porque seus resultados serão alcançados mediante a fé, isto é, mediante toda
uma vida vivida em fidelidade e confiança (é este o sentido etimológico da
palavra fé; o que difere totalmente de um sentimentalismo aéreo). Quem se sente
em estado de “graça”, amado imerecidamente, transforma a sua própria vida em
“ação de graças” (faz “eucaristia”, como diriam os antigos) isto é, transforma
em ação aquilo que tem no coração.
O fato de sentir-se “agraciado” provoca uma relação afetiva com Deus e isto
faz com que a relação com Ele se torne pessoal e não formal, nem ritual, nem
moralista. Quem se sente amado prescindindo do mérito, gera um laço de amizade
e reciprocidade, com as pessoas que erram, que são «cegos, coxos,
surdos», um laço autêntico porque
quem é “agraciado” não julga, é «como o Pai que faz chover sobre os justos e os injustos...» (Mt. 5,45) porque o amor não mede.
É o caminho que nos faz sentir mais de perto em que consiste o amor
“devolvido” por puro amor. É este o “estado de graça” do qual tanto ouvimos
falar e que, deste modo, mostra como nada tem a ver com um perfeccionismo moral
que somente estraga a relação com Deus. Estado de graça é estado de pura
receptividade para poder devolver com outra tanta intensidade. O estado de
graça nos faz mais homens e por isso “mais bonitos”, “mais amáveis” (outro
sentido da palavra, da qual, por sinal vem a expressão “gracioso” ou, em
francês, “charme”). A graça nos faz mais “pessoas para o outro”, como foi
Jesus.
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